Dora Maar é um exemplo de artista que entrou no cânone clássico da história da arte sob a sombra de outra pessoa. Conhecida por seu relacionamento com o pintor espanhol Pablo Picasso, Maar aparece em muitas pesquisas e livros sobre a arte do século XX como a modelo de A Mulher que Chora, e como a fotógrafa que registrou os vários estágios de Guernica, ambos quadros de 1937. Ao visitar a exposição da obra de Maar no Tate Modern, contudo, é possível apreciar a produção da artista por si só, e entender que ela figura num momento chave do desenvolvimento da fotografia como meio artístico.
A exposição organizada em 2019 é a maior retrospectiva já feita da artista. Ordenadas de maneira cronológica, as obras se dividem entre seu trabalho no mercado editorial e sua produção autoral. Duas salas no final do percurso focam nos frutos de seu relacionamento com Picasso, e em suas experimentações artísticas ao final da vida.
Apesar de sua formação em artes aplicadas e pintura, Maar optou pela fotografia como profissão. Em 1931 estabeleceu um estúdio de fotografia em Paris. Trabalhava com moda e publicidade, e produzia imagens para publicações. Muitos trabalhos dessa época empregam uma luz teatral, que usa zonas claras e sombras para criar drama e tensão.
Seus retratos e comissões para editoriais de moda revelam uma linguagem visual própria a partir da qual Maar desenvolve um padrão estilístico. Um exemplo é o conjunto de imagens que Maar fez do monastério Mont Saint Michel na França para ilustrar um livro de história da arte publicado nos anos 1930. Incialmente, as imagens cumprem seu papel de fotografia documental ao descrever elementos da arquitetura do monastério. Contudo, a série de fotos também transcende a objetividade editorial e revela a individualidade de Maar como artista. O contraste aguçado e o ritmo arquitetônico geram uma composição dinâmica e inquietante.
A recorrência dessas tensões sutis precedem a produção artística de Dora Maar como artista surrealista. Em algumas de suas fotografias autorais, Maar se vale apenas da composição para criar imagens absurdas. Ao desafiar o olhar do público, a fotógrafa questiona nossa confiança na veracidade da fotografia.
Se composições inusitadas e perspectivas confusas são lugar comum na produção fotográfica atual, o trabalho de Maar é pioneiro em empregar a fotografia como um elemento de questionamento da realidade pictórica. A introdução de outros elementos fotográficos em uma imagem original também desempenha esse papel. Em contraste com trabalhos de colagem conhecidos no cânone da fotografia como Hannah Höch e Kurt Schwitters, as colagens de Maar se caracterizam por interferências relativamente pequenas. Ao invés criar uma nova imagem com fragmentos de várias fontes, Maar frequentemente ressignifica uma imagem ao introduzir um elemento pictórico novo.
Suas comentários sobre a beleza e o corpo feminino na imagem, provavelmente informados pela sua experiência no mercado de moda, precedem debates contemporâneos sobre a toxicidade de revistas e mídias sociais na auto-imagem de mulheres.
A exposição dedica uma seção inteira ao relacionamento de Dora Maar com Pablo Picasso, e a documentação fotográfica do processo de criação de Guernica, uma das obras mais significativas da carreira do pintor. De acordo com o texto nas paredes, Picasso incentivou Maar a adotar a pintura cubista e ela acabou por abandonar a fotografia como meio de expressão no começo dos anos 1940. Com o tempo, Maar perdeu o interesse em documentar o mundo através da fotografia. Em uma entrevista em 1994 ela disse: “A rua mudou tanto, você não acha? É mais extravagante… mas ao mesmo tempo não é mais interessante. É banal”. Ao final da vida, porém, Maar experimentou com fotogramas e fotografia sem câmeras, criando composições abstratas em preto e branco com interferências diretas no suporte e no processo químico da fotografia. Seus últimos trabalhos feitos com essas técnicas não vieram a público até depois de sua morte em 1997.
A obra de Dora Maar remonta uma época onde a imagem fotográfica expandia suas capacidades como suporte artístico. Maar é uma artista que pensava criticamente sobre o meio fotográfico, e que, através de suas composições e intervenções, já punha em xeque a verdade pictórica da fotografia. O trabalho de Dora Maar prefigura a expansão ainda maior do meio durante as décadas seguintes do século XX. Além disso, exposições como essa desafiam a visão moderna dos “grandes mestres” das artes visuais e questionam valores que colocam a obra de certos artistas à frente de outros por hierarquizações arbitrárias de suporte, de origem social e de gênero. Se não considerarmos Dora Maar como uma protagonista na história da arte, não só perpetuamos uma injustiça, como estamos perdendo o que a sua trajetória tem a oferecer.